Antigamente, os homens não tinham bermudas e amarravam a pele do bilau com fios, para não exporem a parte despudorada de seu corpo: a glande. As mulheres usavam saias compridas, para cobrir as vergonhas de baixo ventre, mas expunham sem problemas os seios. No tempo dos antigos, já havia mudos-surdos entre os Ka’apor. Na casa de Hói, há um pequeno museu em cima do jirau: pele do exótico pirarucu trazida por um camarada, uma carapaça de tracajá que matou, um couro de garcinha-branca e seu bico. Ao ver uma pena grande desenhada de riscos, imaginando a resposta, perguntei do que era. Uiraçu, Hói confirmou. Eu disse que uiraçu é pajé. E Hói: “Pajééé! Parece com o Japiai”. Quando fui para as aldeias ka’apor, levei comigo uma gravação feita por Vladimir Kozák para apresentar às pessoas.[1] O registro da festança foi realizado em 27 de fevereiro de 1959, numa aldeia do igarapé Icoaraci-paraná. A cauinada tinha como dono o casal Mã Putyr e Pirangwa (conhecido pelos neobrasileiros como Jupará). [1] Kozák foi da seção de Cinema Educativo do Museu Paranaense, atuando também como técnico de cinema na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras do Paraná (que depois iria se transmutar na Universidade Federal do Paraná). Kozák esteve na aldeia de Apĩ, para gravar um ritual, fotografar os índios e coletar peças. 106 peças estão atualmente no Museu de Arqueologia e Etnografia da Universidade Federal do Paraná. Seus cadernos de campo estão no Museu Paranaense. Além de sua produção audiovisual, Kozák desenhava, pintava e escreveu sobre o povo xetá e um ritual bororo. Cf. http://www.museuparanaense.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=107 Kozák gravou imagens que comporiam um filme, mas elas permaneceram sem edição final, divididas em duas partes, uma de 55 minutos e outra de 40 minutos. Além da cauinagem, foram gravadas várias cenas de outras atividades. Um personagem sobressai aos outros: é o mudo-surdo Japiai. Ele aparece flechando, carneando caça, tocando tambor na ocara e soprando a corneta na borda do mato. Japiai foi retratado enrolando o grande cigarro, que seria usado na festa, mas que também é um instrumento de pajelança. Além disso, Japiai aparece sinalizando na cauinagem, quando recusa bebida da dona da festa. Japiai morava no Gurupiúna. Porém, na época da gravação, estava mais ao oeste, no Icoaraci. Alguns dos velhos com quem conversei conheceram o finado mudo Japiai. Primeiro, o finado Jupará, que foi o dono da cauinagem gravada por Kózak. Lembrou rapidamente do nome de Japiai. Kujã tuwyr, moradora do Axingi, também aparece no vídeo, e se recorda do pajé Japiai. Na época, ela era uma meninota. Petrônio, da aldeia Turizinho, comentou ter visto Japiai certa vez. Area, da aldeia Inajaty renda, também se lembrou dele e de outros surdos dos tempos antigos. É Hói quem se lembra com mais carinho de Japiai. Várias vezes ao escurecer, Hói me procurava e dizia vou ver meu avô (ihɛ̃-ɾamũj). Estava se referindo ao mudo-surdo Japiai, com quem convivera quando jovem. Para enfatizar as capacidades do finado surdo, Hói alonga a vogal da última sílaba e coloca um tom alto “pajéé!” [pajɛ̋ː]. Hói, netoclassificatório de Japiai (foto de 21/09/2018) Certa vez, Hói adoeceu e foi tratado pelo mudo, seu ancestral pajé. Hói matou uma tejubina e falou: “Um taiaçu flechei! Um taiaçu que eu matei!”. Fez uma fala ruim, desrespeitosa para a embiara. As embiaras são xerimbabo: matar e falar para elas irrita seus donos. O Dono dos tejus (tɛju-jaɾ) ficou bravo: “Mataram meu xerimbabo!”. Então, o Dono dos Tejus mandou caruara no jovem Hói. Essa vingança do Dono dos tejus virou doença.
A cabeça de Hói ficou louca (i-ɲakã kaʔu). A visão dele ficou com pintas (ɛha pinim), ficou com os olhos loucos (ɛha-kaʔu). De noite, ficava sonhando e arranhava sua mãe, enquanto sonhava. A mãe de Hói concluiu: “É, ele tá doido”. Levou Hói para Japiai diagnosticar. Japiai era pajé, pajé mesmo. – Meu filho fica sonhando de noite, o olho dele tá louco, – sinalizou a mãe ao pajé. O surdo Japiai, para diagnosticar a origem do caruara, enrolou fumo no tauari. Grandão era o cigarro que fez: do cumprimento do antebraço. Tacou fogo no tauari. ÁI ÁI ÁI ÁI ÁI! Japiai cantou ÁI ÁI ÁI ÁI ÁI! Fumava seu grande cigarro. Então o gavião (japukanim) desceu para ele, chegou até Japiai. E falou que o Avô dos tejus (tɛju-ɾamũj) tinha levado seu filho. Levou para longe, para lá na base da terra (ɪwɪ-pɪta). Então Japiai caiu PAM! no chão. Outro pajé veio para cantar, Nanĩ-ru, cujo nome verdadeiro era Ararũ. Enquanto este cantava, Japiai foi rapidamente até a base da terra, no fim do mundo, no chão. Viam Japiai gemendo (jamu) IH... IH... IH... O outro pajé ajudou Japiai a se sentar. Japiai, então, pegou a alma do jovem Hói com as mãos. Pegou e colocou no cocuruto (i-akã-pɪtɛɾ) de Hói. O jovem Hói dormia, estava cansado demais. Japiai observou: “Agora ele não vai mais matar calango. Não é bom para ele matar tejubina”. Durante toda sua vida, Hói não matou mais. Quando tem um teju, ele só olha, e o teju corre e vai embora. Japiai não teve descendentes. Mas Hói é neto classificatório de Japiai e lembra de seu antepassado com saudade, a ponto de quase todo dia ter ido pedir para ver o filme com o finado mudo. Area também conheceu Japiai. Disse que ele morava no Gurupiúna. Foi lá que Japiai morreu e onde devem estar seus restos mortais, embora agora não deve ter sobrado nem pó de osso. Japiai ficou com a barriga doente. Isto o deixou magrinho, magrinho. Então, Japiai começou a vomitar. Botou sangue pela garganta. Foi este sangue que matou Japiai, o mudo-surdo pajé.
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Des-AutorGustavo (de) Godoy (e Silva) HistóricoCategorias |